Subiu a cortina

Caro leitor,

Seja bem vindo ao mundo das cordas, madeiras e metais. Aqui você encontrará minhas impressões sobre diversos concertos de música erudita realizados na cidade do Rio de Janeiro. Também compartilhará dos meus devaneios sobre o mundo dos clássicos e algumas dicas de programas, filmes e discos. Só peço a cortesia de fazerem silêncio durante o concerto (e nada de ficar desembrulhando balinhas). Obrigada!

domingo, 10 de agosto de 2014

Salvação

"Já fui a muita missa na minha vida. Já assisti sermões de padres, bispos, monsenhores e dois papas! Mas nunca senti uma energia espiritual tão forte quanto essa de hoje. É muita bênção!"

Essas palavras não são minhas. Ouvi de uma senhorinha na saída do Theatro Municipal após a interpretação do Messias de Handel pela Orquestra Petrobras Sinfônica, na última sexta-feira. Realmente, foi uma noite abençoada. O homenageado, maestro Armando Prazeres que teria completado 80 anos esta semana, certamente estava assistindo do seu camarote celestial a sua obra predileta sendo tocada pela orquestra que fundou, com um filho regendo (Carlos Prazeres) e o outro de spalla (Felipe Prazeres). E o que se ouviu, acordou os anjos. 

A mezzo-soprano Carolina Faria foi o destaque dentre os solistas, não apenas pela belíssima performance mas pelo seu envolvimento com a obra ao longo de toda sua duração. Mesmo quando não estava cantando, era notável sua concentração, sua emoção diante da performance dos colegas e sua entrega à música do oratório. Consequentemente, suas falas estão entre as mais memoráveis da noite, com menção honrosa para "O thou that tellest good tidings to Zion" e "He was despised and rejected of men". Nesta última passagem, que retrata a paixão de cristo, ficou sensível o ódio e desprezo direcionado ao Cristo e o penar da interprete em relatar tamanho sofrimento. A cena parecia se desenrolar diante dos nossos olhos enquanto as cordas da orquestra ditavam o ritmo dos passos romanos. 


O barítono Sávio Sperandino também rendeu momentos de fortes emoções. "Why do the nations so furiously rage together", em tempos de guerra no Oriente Médio, chocou pela atualidade de uma obra composta em 1741. "The trumpet shall sound" veio com anúncio potente e um trompete divino (Nelson Oliveira) soando do camarote presidencial, como deve ser um recado do todo-poderoso. 


Diretamente dos céus, voaram para o palco os Canarinho e Canarinhas de Petrópolis, para o nosso deleite auditivo. Esse coral infanto-juvenil é uma joia preciosa que coroou a apresentação da OPES com delicadeza e pureza. As vozes que anunciaram o nascimento de Jesus ("O thou that tellest good tidings to Zion"), o ascenderam ao céu ("Lift up your heads, O ye gates"), e festejaram a glória de Deus em um emocionante "Hallelujah" que resultou em um caudaloso rio de lágrimas que escorria pela minha face.  


Antes do Amen, Handel guardou ainda uma última prece: "If God be for us, who can be against us", uma frase que, coincidentemente, minha mãe me ensinou a murmurar cada vez que inicio uma viagem. E desta vez a proteção divina veio da voz da soprano Rosana Lamosa, do violino de Felipe Prazeres e do violoncelo do Hugo Pilger. Que Handel os abençoe. 


Ao sair do Municipal, após um jejum de concertos de 60 dias, fiz o sinal da cruz em reverência e gratidão pela bênção que o Universo me concedeu de estar presente em um evento tão especial. 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Amores de Carmen

"Sur la place chacun passe, chacun vient, chacun vas..."

Me arrepio todinha só de ouvir essa palavras porque sei que Carmen de Bizet está começando! A primeira vez que assisti a essa ópera eu devia ter uns cinco anos e foi quando meus pais ganharam uma fita VHS com a versão em filme estrelada por Julia Migenes e Plácido Domingo nos papeis principais. Desde então a história e suas personagens entraram para a minha vida e eu os visito rotineiramente.



O problema de assistir a um obra mais de 50 vezes (não estou exagerando, podem perguntar para a minha mãe), é que aquela versão se torna a sua referência e qualquer desvio daquela interpretação te parece inaceitável. E quando o parâmetro é aquele elenco da produção de 1984, o bicho pega para achar encenação à altura das suas expectativas.

Ciente da minha condição de Carmen-chata e temerosa após ouvir rumores de "releituras" na direção de cena e cenografia do Allex Aguilera, fui assistir à apresentação no Theatro Municipal com coro e orquestra da casa. Eu poderia passar cena a cena aqui com minhas observações, mas acho que perderia meus poucos leitores então vamos aos pontos mais importantes.

Melhor artista no palco ontem foi a soprano Ekaterina Bakanova no papel de Micaëla. Seu dueto com José Manuel Chú (Dom José) no primeiro ato ("parle moi de ma mère...") foi emocionante e o solo no terceiro ("Je dis que rien ne m'épouvante...") acompanhado das macias trompas da OSTM deu vontade de rezar junto. Outros pontos altos incluem a dança flamenca com chales, leques e saias rodadas durante a primeira cena do segundo ato com todos os ciganos reunidos chez Lillas Pastia; o prelúdio do terceiro ato com aquele dueto de flauta e clarineta leve como uma pluma plainando sobre as montanhas espanholas; e a cena final onde Edineia de Oliveira mostrou todo o deboche do qual uma verdadeira Carmen é capaz!

O grande problema da noite foi o desencontro entre coro e orquestra que o maestro Isaac Karabtchevsky não soube consertar. Com o canto descasado da música em diversos momentos, sempre um pouco mais lento, várias das minhas cenas favoritas acabaram prejudicadas incluindo a sempre esperada Habanera e os meus xodós pessoais: a cena da briga na fábrica ("Au secours! Au secours!") e a partida dos ciganos para as montanhas ("La vie errante, le ciel ouvert...").

Fora isso, a tal da "releitura" da direção de cena pecou, a meu ver, em alguns aspectos incluindo: (1) Habanera sendo cantada de cima de um balcão longe dos homens; (2) Dom José dando um amasso na Micaëla depois de ler a carta da mãe; (3) Carmen cantando "Les tringles des sistres tintaient" estatelada na cadeira; (4) violão e palma de figuração para o Escamillo (que, alias, passou desapercebido por mim) no seu célebre "toréador en guarde"; (5) as brigas do Dom José com os seus concorrentes; (6) a projeção da tourada no último ato que certamente me lembrou que eu odeio touradas mas que cortou totalmente o clima da ópera e desviou a atenção da música e do coro. E, como de hábito, o recurso da projeção de cenário foi subutilizado.

Mas como eu dizia no início desse texto, essa ópera foi um dos meus primeiros contatos com a música clássica, fez parte da minha formação musical e continuará encantando milhões por anos a fio por um simples motivo: a música é formidável, forte e emocionante! A cada récita eu descubro um novo requinte de harmonia, uma sutileza outrora despercebida, um solo escondido no meio da orquestra. E é ao vivo que essas jóias se mostram e que você percebe toda a vulnerabilidade do artista e do personagem que está ali na sua frente. Nenhuma interpretação será igual àquele filme mas também nenhuma será igual a essa récita que eu assisti ontem. E isso é mágico!

Encerro esse texto com as palavras da Ana Carolina Marques, militante do movimento feminista, que me acompanhou ontem ao Theatro: "Por um novo final de Carmen, onde ela tira uma navalha da bolsa, degola D. José e segue divando com a ciganada." Se algum amigo compositor quiser encarar o desafio, eu me candidato a adaptar o libretto.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Um Brasil sonoro e contemporâneo

O quarteto Belmonte é um quarteto de cordas formado por músicos residentes na cidade do Rio de Janeiro mas o destino quis que a sua estreia em 2013 fosse em Curitiba (PR), longe dos meus ouvidos. A estreia e todos os 69 concertos seguintes! Portanto vocês podem imaginar meu entusiasmo quando soube que finalmente o SESC ia produzir um evento do Sonora Brasil no CCBB, aqui na Cidade Maravilhosa. 



O tema do circuito 2013/2014 é "Edino Krieger e as Bienais de Música Brasileira Contemporânea" então tive que me preparar psicologicamente para um repertório mais desafiador para mim como ouvinte. Confesso. Tenho sim um certo preconceito contra o "atual" e uma nítida predileção pelos clássicos e românticos, além de Bach que veio antes de tudo e criou a luz! Mas não se pode ignorar a voz do seu tempo, então lá fui eu para o concerto em pleno domingo de estreia de temporada de Game of Thrones (só para reforçar a minha dedicação à cena de música de concerto da cidade)! Fui fartamente recompensada. 

Da série "coisas que só a música contemporânea faz por você", assisti ao concerto ao lado de três dos compositores interpretados: Edino Krieger, Ricardo Tacuchian e Carlos Almada. Todos pareceram tremendamente satisfeitos com o resultado e ainda aprovaram as falas introdutórias de cada peça. Aliás, sustento que isso deveria ocorrer em todos os concertos, ou pelo menos todos de música de câmara. Por mais simples que seja, a fala aproxima o músico da plateia e ajuda a gente a focar em aspectos importantes da obra que poderiam passar desapercebidos. 

Talvez eu não tivesse reparado, por exemplo, que o terceiro movimento de "Telas Sonoras" (Krieger, 1997) ilustra a técnica de pintura do pontilhismo com o pizzicato das cordas (sacada genial!). Talvez eu não tivesse sido sugada pelo buraco negro do "Vórtice" (Resende, 1997). Talvez eu não tivesse viajado pelos contrastes entres os países, tristes e emergentes, que são cortados pelo "Trópico de Capricórnio" (Tacuchian, 2011). Só um adendo, eu pesquisei para confirmar e os países são: Namíbia, Botsuana, África do Sul, Moçambique, Madagascar, Austrália, Chile, Argentina, Paraguai, Brasil (Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná). 

Mas é claro que nem tudo precisa de explicação. Como não dançar em homenagem ao Astor (Almada, 1995)? Como não sentir no fundo do peito o som do Brasil do Quarteto de cordas no. 1 (Krieger, 1955)? Como não passar por uma intensa sucessão de sensações, condensadas em uma "Peça Breve" (Santos, 1980) e apenas quatro cordas? Afinal, a música contemporânea fala do mundo que a gente conhece, das angústias que a gente experimenta e da esperança que a gente compartilha. Na voz do quarteto Belmonte, até que as perspectivas estão melhorando... 

Sou meio (totalmente!) suspeita para falar desse grupo de músicos pois já sou fã dos quatro, individualmente, há anos. Janaína Salles (violoncelo), Dhyan Toffolo (viola), Márcio Sanchez (violino) e Ubiratã Rodrigues (violino) são artistas talentosos, sensíveis, versáteis, criativos e dedicados à sua profissão. Além disso, neste concerto, eles desfrutaram de uma vantagem oferecida para poucos: eles já tocaram esse repertório juntos dezenas de vezes para uma miríade de públicos. Dizem que a prática leva à perfeição... Bem, eu não saberia falar de perfeição, mas quando a gente arrepia com uma única nota da viola, um simples toque do violoncelo ou apenas a entrada do violino, é porque o negócio tá bom! 

domingo, 23 de março de 2014

Abertura da temporada

Declaro aberta a temporada 2014 de música de concerto no Rio de Janeiro! Ou melhor, declaro a minha felicidade e satisfação ao testemunhar o retorno das grandes orquestras do Rio ao palco do Theatro Municipal.

Foi com grande penar que faltei à estréia da OSTM no dia 14 de março com uma interpretação da Nona Sinfonia de Beethoven que foi considerada uma verdadeira obra de arte. Creio que a maior prova que a performance dos músicos e cantores do coro do Theatro foi memorável é o contento dos próprios artistas que costumam ser eles mesmos seus mais severos críticos. Até o maestro recebeu elogios então o negócio deve ter sido realmente muito bom.

Já a estréia da OPES, eu pude assistir com meus próprios ouvidos a um programa delicioso onde constava a Bachiana no.9 do Villa-Lobos, o Concerto para piano no. 1 e a Sinfonia no. 5 do Tchaikovsky. Sinto dizer que nosso querido Villa ficou ofuscado pelo brilho do russo mas a noite foi marcada por interpretações brilhantes! O pianista convidado Saleem Ashkar impressionou pela clareza, a delicadeza e o sentimento que transmitia a cada nota que produziu (e olha que foram milhares). Espero que ele volte logo para tocar o Beethoven que ele acaba de gravar (fica a dica). A orquestra respondeu à altura com o seu time de titulares absolutos do jeitinho que a gente gosta.

Eu não costumo citar nomes de integrantes da orquestra porque acho uma injustiça mas desta vez vou abrir uma exceção. O segundo movimento da sinfonia me levou às nuvens com a contribuição de solos de um quinteto dos sonhos, o meu "Dream Team" dos sopros: Philip Doyle (trompa), Carlos Prazeres (oboé), Marcelo Bomfim (flauta), Elione Medeiros (fagote) e Cristiano Alves (clarineta). Foi um prazer e um privilégio escutar a "conversa" desses craques numa prosa elegante, leve e sutil, daquelas que a gente suspende a respiração pra não correr o risco de atrapalhar.

Além das grandes produções do Theatro, merece registro os esforços de outros grupos que mantêm a cena musical do Rio de Janeiro viva e diversa, muitas vezes sem apoio ou divulgação suficientes. Nesta semana a Cia. Bachiana Brasileira encenou a lindíssima e melodiosa opera Cavalleria Rusticana de Mascagni. Os diretores souberam usar a criatividade no aproveitamento do espaço (bem restrito para orquestra e coro) e contaram com boas interpretações dos músicos da camerata (especialmente flauta, oboé, contrabaixo e primeiro violino) e dos cantores. O ponto alto foi a cena da missa da Páscoa onde o coro interpreta as preces do vilarejo. Emocionou! Bravi tutti!

Em tempo, estou aguardando ver como vai ficar essa junção das orquestras da FOSB para poder me programar... E vamos em frente 2014 pois tem mais coisa por vir!